HENRI WALLON E A PSICOLOGIA EMOCIONANTE
Neste artigo, publicado originalmente na edição de abril de 2011 da revista Direcional Educador – a quem agradecemos pela permissão em publicá-lo aqui – eu falo um pouco sobre as ideias de um dos grandes psicólogos.
O francês Henri Wallon (1879 -1962) forma, ao lado de Piaget e de Vigotski, o trio de ouro da psicologia do desenvolvimento. Na minha opinião ele é mais do que isso: é o autor da teoria psicológica mais rigorosa e completa de todos os tempos, e suas idéias podem ampliar muito nossa visão sobre o ser humano e sobre a educação, em pleno século XXI.
Nesse artigo vou tentar justificar um pouco essa visão, mas de forma muito incompleta, porque Wallon é um autor muito complexo e profundo. Apesar de mais de duas décadas de convívio com suas idéias, ainda me espanto a cada nova leitura de seus textos.
O que há de tão importante na visão de desenvolvimento humano construída por Wallon?
Em primeiro lugar, na base de tudo, está a tremenda ênfase que ele dá ao papel das emoções no desenvolvimento das pessoas. Nenhuma outra teoria psicológica que se pretenda científica, ou seja, construída a partir da observação sistemática de bebês e de crianças, é tão “encarnada” no corpo e nos afetos de cada ser humano.
“SÂO TANTAS EMOÇÕES”
Tanto Piaget como Wallon dão uma importância primordial aos movimentos musculares na gênese da vida mental e, quando Piaget afirma que existe uma inteligência antes da linguagem, Wallon certamente concorda.
Mas, a partir daí, Piaget desenvolve uma teoria do “sujeito que aprende”, criando uma obra sensacional mas que, como ele mesmo afirmava, não era uma obra de psicólogo, e sim de alguém preocupado em responder a uma questão: “Como se constrói o conhecimento?”. Piaget constrói, no máximo, uma psicologia da inteligência.
Já Wallon, tomando o corpo como ponto de partida, constrói uma teoria que contempla a integralidade do desenvolvimento humano.
Segundo Émile Jalley, a descoberta genial de Wallon consiste em uma análise completa, nova para sua época, dos componentes funcionais da motricidade.[i]
Em um excelente livro sobre Wallon, a brasileira Izabel Galvão resume estes componentes da motricidade:
A musculatura possui duas funções: a função cinética, que regula o estiramento e o encurtamento das fibras musculares, e é responsável pelo movimento propriamente dito; e a função postural ou tônica, que regula a variação no grau de tensão (tônus) dos músculos.[ii]
Jalley nos ajuda a entender o significado da “função postural ou tônica”:
A motricidade apresenta também, no ser humano, uma função expressiva (proprio-efetiva, postural ou tônica), dirigida para o ser humano, e base da afetividade. Além disso, a aparição desta segunda função precede genéticamente a da primeira, fornecendo-lhe a verdadeira base.[iii]
Falar de emoção significa falar dessa função tônica, e vice versa. Como explica outro autor francês:
A emoção se traduz e se imprime na tonicidade muscular de forma imediata e indissociável. Todas as emoções, segundo Wallon, explicariam-se, na criança, pela maneira como o tônus se forma ou se conserva, sendo muito estreita a reciprocidade entre a sensibilidade orgânica e a atividade tônica dos músculos. O medo, por exemplo, traduz-se pela total desorganização das funções tônica e postural.[iv]
Não é uma visão interessante das coisas? E vai ficar ainda mais, pois vamos ver que as emoções, além de estarem na base do desenvolvimento de cada ser humano, também constituem o primeiro canal de comunicação com os outros.
AS EMOÇÕES E OS OUTROS.
René Zazzo (1910-1995), psicólogo brilhante, amigo e “discípulo” de Wallon, afirmava, coberto de razão:
É da natureza da emoção, é da natureza do organismo humano, ser social. No modelo de Wallon, o homem é um ser naturalmente social.[v]
Como as emoções ligam o bebê humano aos outros?
Na visão de Wallon, no início da vida o bebê possui apenas as emoções. E ele não possui nenhum poder sobre elas. Falta-lhe qualquer controle consciente e voluntário de seu corpo, de seus gestos e de sua função tônico postural. Nas palavras de Zazzo, que termina citando Wallon:
No recém-nascido entrelaçam-se sem poder ainda coordenar-se, nem ter qualquer eficácia, bruscas distensões musculares e reações tônicas, espasmos. É o período que Wallon designa como de impulsividade pura. “Incapaz de efetuar seja o que for por si mesmo, é manipulado por outrem, e é nos movimentos do outro que as suas primeiras atitudes tomam forma.”[vi]
Pedro da Silva Dantas resume a visão essencialmente interativa de desenvolvimento proposta por Wallon:
A emoção estabelece uma comunhão imediata dos indivíduos entre si, fora de toda relação intelectual; estabelece relações com o meio humano e constitui o fundamento da intersubjetividade.[vii]
Nas últimas décadas do século XX, novas pesquisas mostraram que, como resumiu John Bowlby, os seres humanos, desde a infância, são mais sensíveis às atitudes emocionais daqueles que os cercam do que a qualquer outra coisa.[viii] As pesquisas revelaram, por exemplo, que um bebê de 6 semanas de idade já reconhece a diferença entre uma mãe receptiva e uma mãe indiferente, e parece não gostar de se deparar com a última.[ix]
A incrível capacidade precoce dos bebês para perceber os outros torna ainda mais fascinante o papel das emoções, desde os primórdios da existência dos bebês. O risco, entre os pesquisadores atuais, é esquecer as emoções devido ao fascínio com as descobertas sobre a atividade cerebral e cognitiva dos bebês. Essa é uma falha grave e, em Wallon, psicólogos e neurologistas ainda podem encontrar as melhores pistas para enriquecer de forma rigorosa sua visão sobre a infância, e para abrir novos rumos para a pesquisa.
Em comum com Vigotski, Wallon achava inaceitável pensar o bebê de forma isolada. Para ele, o bebê começa a vida tendo uma sociabilidade muito íntima com o ambiente humano, visto que começa por depender estreitamente dele. Diante disso, o que ele precisa não é de um progresso, mas sim de uma retração da sociabilidade.[x]
Como o psicanalista Winnicott, Wallon achava que um bebê sozinho não existe, e sua visão é construída a partir dessa situação de dependência total de um bebê imerso em um meio em que adultos reagem às emoções que o agitam, e do seio das quais emerge, aos poucos, sua consciência de ser um “eu” diferente do meio em que as emoções o mergulham, e no qual ele começa a descobrir, também, os “outros”.
Espero ter apresentado uma introdução ao menos razoável ao espírito da teoria de Wallon. No espaço que me resta, gostaria de introduzir algumas idéias que podem aumentar a curiosidade pela obra desse cientista genial.
PITADAS DE WALLON:
A obra de Wallon é extremamente diversa e abre um sem fim de novas perspectivas para aqueles que mergulham nela. Existem aspectos da psicologia humana que Wallon aborda melhor do que qualquer outro psicólogo. Vejamos alguns exemplos:
* Emoções são contagiosas…
A emoção liga os bebês aos outros, e emoções são contagiosas.
É na teoria de Wallon que encontramos a melhor explicação para o que pode acontecer em uma sala da Educação Infantil quando, por exemplo, uma criança começa a bocejar, ou então a chorar. Quanto menor a idade das crianças, maiores as chances de observarmos fenômenos que Wallon chamaria de contágio emocional, e que fazem com que outras crianças também comecem a bocejar ou a chorar.
Essa idéia é importante para quem lida com grupos de crianças, claro, mas sabemos que, na verdade, qualquer um de nós, quando se deixa “dominar pelas emoções” pode acabar se confundindo com outras pessoas…
Para entender fenômenos coletivos envolvendo multidões de pessoas que festejam ou que cometem barbaridades, um bom lugar para começar é com Wallon e sua idéia de que, em qualquer idade, a influência das emoções pode fazer a vida mental regredir a estágios mais primitivos de desenvolvimento.
Pense um pouco: você consegue se lembrar de uma ou mais situações em que se deixou levar pelas emoções? E, em caso afirmativo, você consegue perceber a regressão e a perda das fronteiras entre o “eu” e os “outros” de que fala Wallon, ao descrever não apenas a primeira infância, mas o comportamento de adultos submergidos pelas emoções?
Aprender a controlar as próprias emoções e a agir com “temperança” era um objetivo educativo prioritário, na Grécia Antiga, e que tem voltado às manchetes com conceitos como o de “inteligência emocional”, que é de uma superficialidade espantosa, quando comparado ao rigor com que as emoções são tratadas na psicologia de Wallon, que nos oferece os mais sólidos fundamentos para pensar a educação de pessoas que se emocionam, ou seja, de cada um(a) de nós….
* O olhar do outro
As pesquisas das últimas décadas nos mostraram o quanto bebês humanos possuem competências para perceber e para interagir com os outros. Essas competências precoces para, por exemplo, notar a aproximação e a presença de pessoas, devem ser pensadas à luz das idéias de Wallon, que falava sobre uma forma de sensibilidade muito primitiva que, segundo ele, diz respeito ao despertar de atitudes relacionadas à aproximação ou à presença de outra pessoa.[xi]
Wallon comenta o fato de que sentir-se observada pode alterar todo o comportamento não apenas de uma criança, mas de qualquer pessoa:
Sob a insistência de um olhar, sob a impressão de ser o objeto da atenção de alguém, pode acontecer a qualquer um de perder a compostura. É a desordem atirada sobre o sistema de atitudes. O efeito produzido é, aliás, variado; e seria possível, sem dúvida, classificar os indivíduos segundo o tipo de desordem que eles apresentam em tais casos.[xii]
Todos nós somos sensíveis ao olhar dos outros, e boa parte de nossas existências consiste em fingir que não…
Para Wallon, uma criança pode se sentir extremamente desconfortável se, em vez de afastar-se, o adulto insiste em interagir com ela:
Os gritos veementes, a rigidez, a obstinação das atitudes aumentam a medida que a atenção de que a criança é objeto torna-se mais precisa, mais próxima e mais intensa. É um contrasenso cometido em excesso o de procurar reduzir por um suplemento de atenção o que é intolerância pela atenção de outro. Os aspectos que pode revestir essa intolerância são de três tipos: a simples oposição ou negativismo, a angústia, o medo e a cólera.[xiii]
Nas últimas décadas temos falado muito, em pedagogia, sobre a importância de promover interações, e ainda há muito a ser feito no sentido de termos escolas mais interativas. Mas é fundamental lembrar que, em uma série de casos específicos, proporcionar privacidade e proteção contra o “olhar dos outros” pode ser importante para quem lida com crianças, jovens e adultos angustiados, assustados ou enfurecidos…
* O corpo reprimido
Para Wallon, bebês que se emocionam, que ficam excitados, precisam de atividade. Usando como exemplo uma situação em que um adulto faz cócegas em um bebê, ele fala sobre a existência do que chama de uma lei muito primitiva de equivalência entre o grau de excitação e o tônus, que pode induzir uma atividade destinada a esgotá-la gradualmente, ou acumular-se em excesso até se traduzir em contraturas e em espasmos.[xiv]
Um bebê excitado precisa de atividade, e tende a manifestar tonicamente a excitação acumulada. Wallon fala de situações em que a atividade alegre transforma-se em contratura dolorida e finalmente em crise emocional.[xv]
O que nos leva a refletir sobre o que acontece com uma criança que é reprimida demais (ou seja, com praticamente todas as crianças) e aprende a inibir seus músculos voluntariamente. Nas palavras de André Lapierre – criador da Psicomotricidade Relacional – isso pode ser muito ruim, pois o excesso de controle “voluntário” abafa as expressões musculares “tônicas”:
Quanto mais as contrações dinâmicas (voluntárias) são numerosas e importantes, mais elas tendem a apagar as contrações tônicas, que são de intensidade menor, a menos que expressem uma carga agressiva.[xvi]
Essa são noções tremendamente interessantes que não vamos aprofundar aqui, mas que abrem caminhos para a reflexão, por exemplo, sobre o que estamos fazendo com os corpos – e portanto com as emoções – de nossas crianças, em nossas escolas. A atividade corporal é uma necessidade primária da infância, o que acontece quando essa necessidade é ignorada, e exige-se a imobilidade de crianças que vivem em um mundo que, fora da escola, é cada vez mais excitante e turbulento?
* A emoção simbolizada
Wallon também fala sobre a importância da aprendizagem de modos “simbólicos” de expressão da emoção, que oferecem uma alternativa à simples expressão tônica da excitação acumulada pelo bebê. Mas, para isso, a criança precisa da capacidade de simbolizar, de imaginar.
Assim como Bruner e Vigotski, Wallon concebe a imaginação como nascendo no jogo simbólico da criança e sendo, inicialmente, prisioneira do movimento. A partir do momento em que o ser humano começa a brincar de faz de conta, um novo caminho para a expressão dos afetos se abre. Essa evolução pode culminar em formas extremamente elaboradas de expressão simbólica e de arte e, mesmo nesses estágios mais avançados, sua função de transformação das emoções permanece tendo importância primordial.
Wallon fala sobre a obra de Goethe, em um exemplo de grande profundidade:
Para Goethe, exprimir sua dor numa narrativa, num poema, equivalia a afastá-la de si, isto é, a suprimir as reações orgânicas que fazem senti-la intimamente. Na medida em que se torna possível narrar uma tristeza, ela deixa de ser visceral e puramente emocional.[xvii]
Quantas implicações tem uma idéia como essa, nas mais diversas áreas de educação e da terapia, não é mesmo?
CONCLUINDO
Ainda hoje, as idéias de Wallon abrem espaço para um diálogo com e entre os mais diversos campos da ciência. Sua leitura crítica de Freud (com quem suas idéias tem inúmeras afinidades), sua sólida formação como neurologista, o foco simultâneo no corpo e nos aspectos sócio culturais do desenvolvimento o tornam um autor fundamental para quem busca transcender fronteiras entre diferentes abordagens. Ler e estudar Wallon continua a ser uma atitude inteligente e emocionante!
NOTAS:
Todos os grifos nos textos citados são meus. Os textos em francês foram traduzidos por mim.
[i] Émile Jalley “Introduction à la lecture de la Vie mentale”, em: Henri Wallon. La Vie mentale. Paris : Messidor, 1982, p. 26.
[ii] Izabel Galvão. Henri Wallon. Petrópolis: Vozes, 4ª ed., 1998, p. 69.
[iii] Émile Jalley. Idem, p.26.
[iv] Robert D. de Bousingen. La relaxation. Paris: PUF, 9ª ed., 1991, p. 17.
[v] René Zazzo. Henri Wallon. Lisboa: Vega, 1972, p. 26.
[vi] Idem, p. 43.
[vii] Pedro da Silva Dantas. Para conhecer Wallon. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 158.
[viii] John Bowlby. Formação e rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 15.
[ix] Margaret Donaldson. A mente humana. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 56.
[x] Henri Wallon. De l´acte a la pensée. Paris: Flammarion, 1970, p. 75, 76.
[xi] Henri Wallon. Les origines du caractère chez l’enfant. Paris: PUF, 8ª ed., 1983, p. 127, 128.
[xii] Idem, p. 128.
[xiii] Idem, p. 130.
[xiv] Idem, p. 114.
[xv] Idem, p. 114.
[xvi] André Lapierre e Bernard Aucouturier. Fantasmes corporels et pratique psychomotrice en éducation. Paris: Doin, 1982, p. 109, 110.
[xvii] Henri Wallon. Les origines du caractère chez l’enfant. Paris: PUF, 8ª ed., 1983, p. 91.