Dizem que uma da maneiras de chamar a atenção dos outros é apresentando pontos de vista polêmicos, e é isso que estamos fazendo aqui, ao propor a discussão de uma ideia que pode parecer chocante para alguns, inclusive para o próprio autor desse artigo:
1 – Não há nada de tão grave assim em que as crianças chamem suas professoras de “tias”.
Essa ideia, que pode arrepiar os cabelos de mais de um(a) pedagogo(a), se justifica pela percepção de um problema muito maior:
2 – Infinitamente mais grave é quando crianças e adolescentes não desenvolvem nenhuma espécie de familiaridade com seus professores e suas professoras.
Essa é a questão que gostaríamos de discutir nesse artigo, e que nos leva a uma posição polêmica pois, afinal de contas, houve um verdadeiro combate contra o velho hábito de dizer “tia”, e esse movimento tinha, e continua tendo, sua razão de ser: é uma luta contra uma visão excessivamente amadora da profissão de professora.
Paulo Freire, em um livro chamado “Professora sim, tia não”, expõe de forma clara as principais razões para as professoras deixarem de ser tias: essa visão de uma classe profissional como sendo constituída de parentes das crianças cria expectativas de que não é preciso uma boa qualificação para fazer o trabalho de ensinar, além de uma visão política passiva e alienada, já que identificar “professoras” com “tias” é quase como proclamar que ‘professoras’, como boas ‘tias’ não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve.[1]
Essa ideia foi encampada por boa parte das escolas do país e, em muitas delas, criou-se o hábito de chamar as professoras pelo seu nome. Aliás, um bom hábito que, em boas escolas, favorece a criação de relacionamentos pessoais de boa qualidade entre alunos(as) e professores(as). Talvez até melhor do que o costume tradicional de sempre preceder os nomes por um “tia” ou “tio”.
Mas, francamente, será que essa diferença é decisiva? Conhecendo pessoalmente muitas escolas públicas e privadas em que ainda há o hábito de dizer “tia”, não acho que essa seja uma diferença decisiva na determinação da qualidade do ensino de uma escola. Se em vez de Lúcia ou Maria, as crianças chamarem suas professoras de Tia Lúcia, Tia Maria, esse detalhe não pode de forma alguma ser considerado decisivo para definir diferenças entre duas escolas. Podemos ter boas escolas em que as crianças chamam as professoras de tias e péssimas escolas em que há o hábito de chamá-las por seus nomes.
Mais grave seria a situação em que, com ou sem o “tia”, as crianças mal soubessem os nomes dessas pessoas que tornam-se tão importantes em suas vidas.
E, pensando bem, não seria exatamente esse um dos grandes dramas da educação, especialmente do 6º ano em diante?
O grande risco para a educação não é o das escolas tornarem-se como famílias, povoadas de “tias”, mas que aconteça o oposto: que elas sejam lugares em que as crianças mal conhecem os adultos, não tenham familiaridade com eles e não se sintam “em casa”.
Para o educador francês Raymond Fonvieille (1923 – 2000), um discípulo dissidente de Freinet, a principal causa da violência e do fracasso escolar era a falta de relacionamento informal entre professores e alunos nas grandes escolas, onde há professores demais e relacionamentos pessoais de menos. Para ele, e não vejo como podemos discordar:
É nessa dispersão, que engendra a irresponsabilidade, o anonimato e a indiferença, que reside o fracasso do colégio atual. Um garoto de dez ou onze anos, bem como os alunos em situação de fracasso escolar que eu atendia, antes de ter necessidade de conhecer a anatomia da rã, tem necessidade de segurança.[2]
Aí está uma ideia simples e sensata: crianças e adolescentes que sentem-se seguros irão se concentrar, pensar e aprender melhor. A insegurança e a ansiedade são as grandes inimigas da inteligência, da curiosidade, da atividade organizada e da aprendizagem,. Qualquer professora de Educação Infantil sabe disso, e é por isso que existe nesse nível de educação uma grande preocupação com a adaptação de cada criança, um processo complexo para procurar fazer com que cada uma “se sinta em casa”, em um tipo novo e diferente de lar.
Deborah Meier, educadora e diretora de uma rede de pequenas escolas que, nos anos 1970 e 1980, alcançou resultados educativos excelentes em um bairro carente de Nova Iorque, acredita que esse caráter “familiar” da Educação Infantil não deve jamais ser esquecido e que até mesmo ao concebermos no trabalho com adolescentes, é necessário manter vivas as idéias e o espírito da boa educação infantil.[3]
Mas o que caracteriza o espírito da Educação Infantil? Para ela, os princípios mais importantes são a proximidade entre adultos e crianças, a abertura de espaço para o desenvolvimento de laços entre as crianças e o uso intenso da imaginação criativa e do jogo. Ele diz que, ao pensarmos a educação de adolescentes, os mesmos princípios deveriam ser aplicados, e é isso que ela fez em suas escolas no Harlem, em Nova Iorque.
Para os dois educadores citados nos parágrafos acima, fenômenos como a criação de gangues de adolescentes estão se acentuando porque não estamos oferecendo aos jovens a possibilidade de contatos ricos com adultos que possam servir como modelos e parceiros de diálogo, em ambientes onde haja espaço para a expressão criativa e para a formação de laços de amizade saudáveis.
A posição de Deborah Meier é clara: embasada em sua experiência, ela afirma que, ao contrário do que se possa pensar, os adolescentes não tendem “naturalmente” a isolar-se em grupos fechados e agressivos. Pelo contrário, afirma, ao falar sobre as virtudes das escolas pequenas, em que todos se conhecem:
As evidências sugerem que a maioria dos jovens possuem uma fome tão profunda pelas relações que essas escolas oferecem a eles – entre crianças e entre adultos e crianças – que eles escolhem a escola em vez das culturas alternativas na Net, na televisão e nas ruas.(…) Percebemos que a fome por conexões com os adultos é forte o suficiente para fazer uma diferença, se dermos a ela uma chance.[4]
Portanto, fenômenos como as gangues só acontecem quando não conseguimos inserir os adolescentes em nenhuma rede de relações ricas em que adultos participam.
A solução para Meiers é clara e passa pela criação de escolas pequenas. Aliás, ao assumir a direção de uma enorme escola pública americana, seu primeiro passo foi dividi-la em várias escolas pequenas pois o que as grandes escolas fazem é recordar à maioria de nós que não temos muita importância.[5]
É claro que ela está falando de enormes escolas públicas em regiões carentes, mas seu alerta é válido para todos nós, em qualquer tipo de escola: um dos maiores riscos que a educação de massa corre é o de criar escolas em que há um isolamento quase total entre crianças e adolescentes, de um lado, e adultos de outro. Nessas escolas, a falta de relacionamento empobrece todo o ambiente, e acaba afetando inclusive as aprendizagens.
Para concluir, eu ousaria afirmar que, em escolas em que as crianças e adolescentes sentem-se “em casa”, os resultados educativos serão excelentes – e os riscos de violência menores – , independentemente dos métodos pedagógicos e que, nesses casos, tanto faz os(as) alunos(as) chamarem ou não as professoras de “tias”, os professores de “tios”. Eu prefiro quando não chamam, se bem que, até hoje, eu chamo a maior e mais completa educadora que conheci, a maravilhosa Vera Miraglia, de “Tia” Vera…[6]
Notas:
[1] Paulo Freire, “Professora sim, tia não”. São Paulo, ed. Olho d’água. 4a edição, 1994. Página 12.
[2] Traduzido de: Raymond Fonvieille, “Face à la violence: participation et creativité”. Paris, P.U.F., 1999. Página 11.
[3] Traduzido de: Deborah Meier, “The power of their ideas”. Boston, Beacon Press, 1995. Página 30.
[4] Traduzido de: Deborah Meiers, “Will standards save public education?”. Boston, Beacon Press, 2000. Página 23.
[5] Deborah Meiers, “The power of their ideas”. Página 30.
[6] Esse artigo foi dedicado à “Tia” Vera Miraglia, na passagem dos 40 anos do Colégio Anjo da Guarda, de Curitiba, ou seja, a versão original deste artigo, revisado para ser postado no “Blog do Luca” em março de 2019, já tem duas décadas…