Apesar do título deste artigo, que tem a finalidade de atrair a atenção, é preciso deixar claro desde já que o seu conteúdo não tem absolutamente nenhuma relação com um best-seller (lançado em 2002 e que virou filme em 2006) que fala sobre o possível envolvimento de Leonardo da Vinci com uma corrente subterrânea e herética do cristianismo.
Aqui, estamos interessados é no Leonardo da Vinci “cientista” e buscamos inspiração nele para nos ajudar a refletir, quase 500 anos depois de sua morte, sobre o ensino das ciências em nossas escolas.
Primeiro, recordemos alguns fatos básicos sobre Leonardo: nascido em 1452 em uma aldeia italiana chamada Vinci (!), ele morreu em 1519 e é até hoje considerado um dos maiores gênios de todos os tempos, conhecido por seu excepcional talento como desenhista, pintor, escultor, arquiteto, engenheiro visionário, inventor de máquinas, cientista descobridor das leis da natureza e muito mais. Apesar de não ser “perfeito” (por exemplo, sua incapacidade de terminar as obras que começava era lendária), é considerado por muitos o ser humano mais inteligente e talentoso que já viveu. Falando sobre Leonardo, Freud escreveu: “Ele foi como um homem que acordou cedo demais na escuridão, enquanto os outros continuavam a dormir.”I
Limitando-nos ao Leonardo cientista, genial decifrador das leis da natureza, o que podemos aprender com uma das mentes mais brilhantes de todos os tempos quando refletimos sobre o ensino das ciências?
Vamos tomar como exemplo seu fascínio pela questão da formação das montanhas. Um especialista em Leonardo nos fala sobre sua curiosidade por esse tema: “No decorrer de suas expedições às montanhas ele se interessou pelos problemas da geologia, e o intrigou especialmente a existência de conchas e vida marinha fossilizada em regiões tão altas e tão distantes do mar.”II
Um artista inglês descreve de forma mais direta essa curiosidade. Colocando-se na pele de Leonardo, ele escreve: “Eu passeava pelos campos procurando a resposta para tudo que não compreendia. Por que nós vemos conchas no topo das montanhas com pedaços de coral e plantas ou algas que nós só encontramos normalmente no mar?”III
A própria pergunta revela uma grande curiosidade em relação ao mundo e traz em si as indicações para a resposta: por algum processo, que deve ser extremamente lento, o fundo dos oceanos foi parar no topo das montanhas. Em oposição a tudo o que se pensava, Leonardo afirmava que essa constatação levava à certeza de que a Terra era um planeta muito mais velho do que se acreditava. Nas suas próprias palavras ele afirmava que, para provar isso “nos basta o testemunho de coisas produzidas na água salgada e hoje de novo encontradas nas altas montanhas longe dos mares.”IV Para que algo assim acontecesse, certamente seria preciso um tempão, muito mais do que se admitia, principalmente com base em interpretações da Bíblia.
Isso quer dizer que Leonardo descobriu todas as respostas corretas para suas perguntas? É claro que não e, apesar de sua intuição fundamental de que “montanhas já foram fundo do mar”, suas explicações para isso não são mais consideradas válidas.V Mas, mesmo assim, continuam sendo citadas como grandes exemplos do que deve ser a atividade científica. Por quê?
Ora, porque qualquer cientista de verdade sabe que, muito mais importante do que aprender respostas para perguntas que não fizemos é buscar meios de responder às perguntas provocadas pelo despertar de nossa curiosidade! Nisso, Leonardo foi um pioneiro.
E aqui está o segredo – o “código”, para lembrar o título enganador desse artigo – de Da Vinci: é em nossa curiosidade, nas perguntas que somos levados a fazer quando observamos a natureza e o mundo, que estão as raízes da verdadeira atividade científica.
Que outras perguntas Leonardo da Vinci fazia? Escrevendo como se fosse ele o próprio Leonardo, o inglês Ralph Steadman fala sobre algumas delas: “Por que o barulho do trovão dura mais tempo do que aquilo que o provoca, e por que o clarão é percebido pelo olho logo que se produz enquanto o trovão leva tempo para viajar? Como se formam círculos na água em volta do lugar onde foi atirada uma pedra, e como é que acontece que um pássaro possa ficar suspenso no ar sem cair?”VI
O resto desse artigo se baseia em uma hipótese: são as crianças que fazem perguntas como as que fazia Leonardo da Vinci e que revelam seu grande interesse e curiosidade pelo mundo.
Essa ideia pode parecer estranha, mas, sem dúvida, há algo aqui com que todos os grandes cientistas parecem concordar: na base do seu talento está a preservação da imensa curiosidade pelo mundo que eles tinham quando eram crianças. Ou seja: nas perguntas sobre o mundo que as crianças fazem é que se encontram as raízes da verdadeira atividade científica. Na preservação dessa curiosidade e na busca de respostas para ela é que está o que há de mais fundamental quando falamos em “fazer ciência”.
Concordando, pelo menos provisoriamente, com essa hipótese, somos levados a uma reflexão interessante: a sugestão principal que tiramos do exemplo de Da Vinci, ao refletirmos sobre como ensinar ciências, é que devemos incentivar as crianças a falarem sobre suas curiosidades e dúvidas, ouvir as perguntas feitas por elas, anotá-las, discuti-las. Essa pode ser a base para um ensino de ciências que se apoie no que há de verdadeiramente fundamental na atividade científica genuína: uma tremenda vontade de compreender o mundo.
Processos de ensino que buscam alimentar a curiosidade infantil, colocar as crianças em contato com o mundo, que motivam a formulação de suas dúvidas, que propõem perguntas fascinantes a elas, que se engajam em processos de pesquisa com base nas perguntas que elas julgam mais importantes estarão no caminho certo para produzir resultados significativos, aprendizagens duradouras e, quem sabe até, futuros cientistas.
Para prosseguir, e pensando no mundo e na escola atual, é muito importante ter em mente que, na época em que Leonardo fazia suas excursões pelas montanhas da Itália, não existia o que nós chamamos de “ciência”. Aliás, o próprio Leonardo é considerado um pioneiro das ciências, do método do “experimentar e ver para crer”. Na Europa do final do século XV, acreditava-se em muitas coisas que hoje podem até nos fazer rir, como, por exemplo, que a Terra era plana, e muitos até afirmavam que ela se apoiava sobre as costas de quatro elefantes. Ninguém ousava perguntar em que se apoiavam esses elefantes…
Portanto, nesse contexto, Da Vinci não tinha muitas opções a não ser buscar por si próprio as experiências e teorias que pudessem satisfazer sua curiosidade imensa.
Nós, ao contrário, possuímos uma quantidade enorme de respostas para um número imenso de perguntas do tipo que Leonardo da Vinci fazia. Ou seja, podemos satisfazer nossa curiosidade e levá-la mais longe aproveitando o que já foi descoberto por outras pessoas, especialmente os cientistas, que já buscaram respostas para as mesmas perguntas. É para isso que servem livros, didáticos ou não, enciclopédias, pesquisas na Internet, entrevistas com especialistas. Servem, ou deveriam servir, para saciar e realimentar nossa curiosidade, para buscar respostas às perguntas que nos interessam profundamente. Mas, infelizmente, nas escolas, eles ainda são utilizados preferencialmente para responder a perguntas que não fizemos, nem as crianças, nem nós…
Para concluir, sugiro que, caso você ainda não ensine partindo de “perguntas que nos interessam mais”, experimente fazê-lo, nem que seja em um ou outro momento bem isolado de sua prática educativa. Fazendo isso, e verificando se “funciona” ou não, você estará participando de um movimento do qual Leonardo da Vinci foi pioneiro, em uma época de trevas: aquele que afirma que não devemos acreditar cegamente no que nos dizem, mas procurar analisar as coisas que nos intrigam à luz da experiência e da crítica racional.
Espero que, apesar do título enganoso, esse artigo tenha despertado sua curiosidade…
(Esse artigo foi publicado na prestigiosa Revista Pátio Ensino Fundamental, número 86, de maio/julho de 2018. que teve como tema “A (des)valorização das Ciências”)
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I Citado em: Nuland, S.N. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Página 13.
II Clark, K. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. Página 261.
III Traduzido de: R. Steadman. I, Leonardo. Nova Iorque: Summit Books, 1983. Página 8.
IV Nuland, S.N. Leonardo da Vinci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Página 105.
V Sobre a questão do valor científico das respostas dadas por L. da Vinci à questão das conchas no topo das montanhas, vale a pena ver o artigo “O movimento ascendente dos fósseis na terra viva de Leonardo da Vinci”, do biólogo e ensaísta Stephen Jay Gould. O artigo pode ser encontrado no livro A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci (SP: Cia. das Letras, 2003).